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Livro "Detrás da Sombra" Em Ebook

terça-feira, 26 de maio de 2009

.A Rampa

Muitas pessoas param a meio. Outras sobem, outras descem, todas elas alegres por ouvirem o som dos seus pés a pisar o chão ritmicamente; muitas delas alheias, mesmo que temporariamente, ao que tal implica. Algumas tropeçam, firmando com sangue, lágrimas ou esgares de vergonha a prova da sua passagem. Há quem desdenhe as pedras mal colocadas, demasiado em baixo ou em cima, ou tão afastadas que os espaços entre si são para os saltos altos aquilo que um abismo é para um suicida (no entanto, continuariam a desdenhar se as pedras simplesmente não existissem). Muitos passam chorando pela morte de alguém amado... ou pela morte da sua dignidade. Outros sorriem, felizes, ignorantes, juvenis. Poucos a entendem verdadeiramente, poucos reconhecem a magnitude da sua simplicidade. Apesar disso, todos sabem o que ela é e por isso a percorrem. Na maior parte das vezes, fazem-no inconscientes de que quanto maior a subida, mais terão que descer. Quanto maior o salto, mais feroz a queda. Porque ela deve ser percorrida pedra por pedra, pé ante pé, entre os ruídos da cidade e os da mente. Enfim, a rampa está destinada a toda a gente.

(Poema contido na obra Detrás da Sombra)

sexta-feira, 22 de maio de 2009

.O preço da mentira

Vejo os sorrisos vagos,
O gesto próprio dos fracos,
Enquanto murmuram que a guerra acabou.

Ouço a tremura na voz,
Enquanto conversam a sós,
E desfrutam do pão que o Diabo amassou.

Enumero mentira por mentira,
Nas falas mansas do dia a dia
E nos olhares vestidos de cobardia
Daqueles que pensam tudo menos o que dizem.

Conto pecado a pecado,
Enquanto se esvaziam os pratos
E se quebram os votos de honestidade
Como sendo a verdade heresia.

A guerra não acabou!
Não é finita, como se anuncia!
Grassa nas mentalidades,
Alimenta-se das falsidades
Que desde o almoço à liturgia,
Celebram a pequenez da humanidade!

A verdade, a verdade!
Coisa maldita que tantos invocam!
Poucos saberão o que ela implica,
Na sua rotineira insabedoria
E na ignorância que os abençoa
A cada gargalhada estridente!

"Ha! Ha! Ha!" - Detritos de gente!
Que se reclude em casas sem tecto,
Pensamentos sem nexo,
E escondem a carapaça
Com a cabeça a descoberto!

Mas quem está certo?
Quem é juiz?
Os honestos trabalhadores,
A vizinha Maria das dores,
Ou a mera meretriz?
Quem protege a veracidade
De cada palavra que diz?

Num mundo em que as sombras são a luz,
A noite é maior que o dia,
E a existência é uma freguesia
Sem moradores de permanente estadia,
Qual a ponte entre o real e a utopia?
Qual o elo entre a verdade e a vida?

Oh, que me tirem daqui!
Protejam-me de mim!
Pois tudo isto digo em vão,
Num esforço para alcançar o vento
E calar esta inquietação.

(Poema contido na obra Detrás da Sombra)

quarta-feira, 20 de maio de 2009

.Súplica Tardia

É como se não mais estivesse aqui
Sim, na neblina eu desapareci
Perdido na incerteza de palavras não ditas,
De verdades malditas, e de olhares piedosos
Que atestam a secura dos meus lábios,
Oh, tristes lábios.

É como se já não fosse completo;
A minha alma é um deserto.
Esquecida entre promessas de mudança,
Suspiros sem esperança, e lágrimas
Que cobram o meu sangue,
Oh, doce sangue.

Mas eu estou aqui
Ninguém me vê, mas nunca parti
Que o solo comprove a minha fúria,
Os céus, os meus clamores,
E o mar, as dores que tentei afogar
Aos meus pés.

Eu estou aqui, eu estou aqui
Entre escombros daquilo que vivi
Por entre sussurros de escarnecer,
Ódio e desconfiança;
Lá se foi a bonança, junto com
A vontade de viver.

No fio da navalha,
No gume da espada,
À beira do abismo;
Apenas o vejo porque o sinto!

Consumido pelo fogo,
Gelado pela frieza,
Cegado pela clareza
Da realidade... ou do absinto.

Eu estou aqui, eu estou aqui
Mas a mim mesmo perdi
Quando fiz com que me perdessem a mim.

(Poema contido na obra Detrás da Sombra)

domingo, 10 de maio de 2009

.Dúvidas do ser

Diria que é por instinto,
Ou acusaria a vontade.
Qual deles a verdade?
Qual deles é o que sinto?

No berçário das ideias,
Na nebulosa do pensar,
É o vento que, ao soprar,
Me diz o que a alma anseia.

E a verdade é uma só,
Infinitamente singular:
A vontade surge por instinto.

E as duas dão o nó,
E me enlaçam em pesar
Por assim se esvaziar a lua cheia.

(Poema contido na obra Detrás da Sombra e musicado por Joel Costa, Carolina Segundo e Diogo Pinto)

.Ultimato

Que se cale a Primavera!
Que desapareçam as flores!
Que adormeça a minha espera
Por um mundo sem cores!

Chega o negro do meu luto!
Basta o vermelho do meu furor!
Que morra de vez o defunto!
Que se cale a minha dor!

Desapareçam, memórias!
Desvaneçam, visões!
Rejeito as tuas glórias
Se as guardas em caixões!

Que se cale a tua voz!
Que rebente a minha cabeça!
Se até na morte me roubas a vida,
Que também ela anoiteça!

Que cessem os sonhos
Se eu tiver que te rever!
Que sufoque esta angústia
Que se cale o amanhecer!

Sucumbe, ó Primavera!
Escurece, ó lírio!
Que acabe a minha espera...
Que se cale este martírio.

(Poema contido na obra Detrás da Sombra)

sexta-feira, 8 de maio de 2009

.Fui

Fui leito de rios
E rir não consegui.

Fui escravo de sorrisos
E sorrir não pude.

Fui braço direito
E o esquerdo perdi.

Fui mais que perfeito;
Que o futuro mude.

Fui tudo aquilo que não foste para mim
E estou aqui.

Fui a água que bebeste na secura da aflição
E sobrevivi.

Fui consolo quando choraste em segredo
E eu bem vi
Quando o espelho das tuas lágrimas
Só te reflectia a ti.

Fui tudo e sobretudo fui eu que consegui
Que tudo aquilo que tinha se tornasse o que perdi
Quando o som do meu secreto meditar
Se perdeu por entre a tua súplica vulgar.

(Poema contido na obra Detrás da Sombra)

.Poço

De olhares foram feitas as medidas do poço,
Em segredos se mergulhou a água.
Pedra sobre pedra se construiu.
Pedra por pedra ele partiu.

O húmido estremecer sufocava o medo,
Calava-se a ânsia pelo ar.
Tempo a tempo se revelou.
Todo o tempo ele procurou.

O ouro rebrilhava na secreta noite,
O dourado sangrava do olhar.
Por ganância a matança sagrou.
Por ganância ele expirou.

No fundo do poço.
Ainda lá estou.

(Poema contido na obra Detrás da Sombra)

.Dormente

De olhos bem fechados.
De lábios calados à verdade.
Dormente… Por fim, dormente.
Ao som do bater da chuva.
Ao ritmo do placebo.
Aqui. Eu estou aqui.
Encontra-me.
Acorda-me.
Ama-me.
Eu espero.
De olhos bem fechados.
De lábios calados à verdade sobre ti.
Dormente… Desde que te vi.

(Poema contido na obra Detrás da Sombra)